texto de Helena Agalenéa | 07 de agosto de 2024
A curadoria é uma tarefa árdua e, muitas vezes, beira o impossível. Em geral, lidamos com dezenas (quando não centenas) de artistas e trabalhos potentes, e nos cabe a função de reduzir um céu completamente estrelado a apenas uma constelação. É assim que eu entendo o trabalho de curadoria: um mergulho num oceano de possibilidades. Não cabe à curadoria julgar/discriminar o “melhor” do “pior”. Quais os parâmetros que comparam a arte feita por diferentes pessoas, de diferentes trajetórias? O que é uma arte mais potente? Um corpo extremamente presente em cena, uma voz aveludada, um bom currículo ou o brilho no olhar? O que mede a potência de um material artístico feito de forma artesanal? Quando pensamos no fazer artístico da música, do teatro, do circo e da dança, estamos falando de artesania, de dedicação, de resistir acreditando na arte como forma de encontro, de linguagem, de trabalho. Não cabe a nós, também artistas e humanas, ousar propor uma linha que separe o “bom” do “ruim”; não temos essa capacidade e muito menos essa intenção.
Olhar para as inscrições de qualquer processo artístico é sempre olhar para uma miríade de possibilidades. Despontam tantas potências nesse mergulho curatorial, que fica complicado organizar, montar uma “constelação ideal”, encontrar quais as águas selecionadas alquimicamente para o nosso “caldeirão criativo”. A curadoria é um processo muito mais amoroso do que seletivo, ouso dizer. Ela exige que nos encantemos pelas pessoas e pelos seus trabalhos. Ainda mais quando a curadoria se propõe uma reunião de mulheres com diferentes trajetórias, analisando os trabalhos e cartas de interesse de outras mulheres, não tem como não trazermos o amor em nosso olhar: saber o que é ser o outro corpo, pertencer à categoria “arte feminina”, ser reduzida ao gênero, não ser o corpo da suposta “universalidade”. Ainda mais quando pensamos a categoria mulher em sua pluralidade: mães, mulheres gordas, pretas, avós, lésbicas, amarelas, indígenas, trans e travestis, brancas, jovens, etc. Somos múltiplas, somos demais para sermos reduzidas a uma caixa. Somos um oceano vasto, profundo, com as mais delicadas ondas e os maremotos mais violentos.
Equipe de curadoria da residência artística do 3º CRIE como quem LUTA
O processo curatorial do CRIE como quem LUTA foi um mergulho, e não ficamos imunes à ressaca de mar. Olhamos tantos vídeos e portfólios, nos encantamos por tantos trabalhos, encontramos, cada curadora, trabalhos que fluem com seus/nossos “gostos pessoais”, percebemos as nossas diferenças de leitura e sensibilidade por diferentes trabalhos, nos encantamos também por aqueles que se distanciam de cada “gosto pessoal”, pois a curadoria madura é aquela que exige que vejamos além do que já nos afeta, nos exige ir além do que nos é familiar (e por isso mesmo, uma curadoria potente une pessoas de diferentes gostos e opiniões, como foi a do CRIE como quem LUTA). Foi um mergulho intenso e, a parte triste que nos lembra a ressaca marítima, é o desejo incessante pela abundância: muitas mulheres não entram nessa lista de “selecionadas”, mas ainda assim são artistas que desejamos criar em conjunto. São muitos os trabalhos “não selecionados”, mas que queremos ver de perto! São tantas vozes que queremos ouvir no presencial, para além da caixa de som do notebook e da televisão… Ah, somos arrastadas por essa maré de impossibilidades, além de cada curadora sentir de um jeito, ter seus parâmetros e olhares… Então sem receio, digo que a curadoria é também um pouco de mar revolto sem chão para os pés.
Júlia Conterno, Juliana Saravali, Cristiane Taguchi, Helena Agalenéa, Dani Scopin e Ju Kaneto: curadoras da residência
O resultado é sempre uma alegria no peito, no entanto. Conseguir desenhar uma linda constelação, de tantas outras que poderiam ter surgido mas, ainda assim, uma linda constelação… é um trabalho de brilhar o olhar. Sonhar com os encontros entre essas artistas, pensar nas possibilidades inúmeras do que pode surgir desse encontro de rios, de tantas águas que vão em breve se encontrar. Saio permeada de potência por esse mergulho ao lado de minhas parceiras.
Não sei ser impessoal ou escrever de forma “técnica”, sou uma travesti esotérica, e não sei me afastar das palavras. Agradeço a confiança de outras mulheres artistas, por me permitirem esse mergulho no mar. Desejo que a chegada das meninas que vêm para a residência do CRIE movimente as águas de Campinas. Que suas diferenças de densidade e temperatura causem tormentas e umidade, tempestades e fertilidade no solo dessa cidade. Acredito muito no encontro, e a formação de redes é o que nos movimenta o sonhar.
Helena Agalenéa, a curadora que aqui escreve
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